Notas

10 horas da manhã. Despertava com as mágoas que seu corpo lhe infligia depois do uso exacerbado que fizera dele na noite anterior. Fumava o último cigarro restante enquanto contava as moedas para o próximo maço. Escrevia alguns pensamentos nas costas de algum documento que deveria ter alguma importância, mas que não a recebia. O frescor do outono lhe trazia certa calma enquanto cruzava o parque del oeste em sua busca por um pouco menos de dormência espiritual e alguma gramas concentradas de tabaco.

Impossível não refletir. Traíra aos seus próprios princípios por um amor que não mais existia e que, de fato, jamais deveria ter acontecido. Colocava-se em pé de igualdade com o imigrante triste que naquela altura da manhã já empilhava três garrafas de cerveja sobre o balcão. Éramos todos ratos naqueles dias, sempre atrás de algo mais para fornecer algum prazer sensorial.

Mas nada acontecia e nada estava prestes a acontecer. Recolheu-se novamente ao seu quarto e escrevinhou mais algumas idéias no verso de outra folha qualquer. Já nem esperava mais nada, apenas deixava ser. Encarregava-se da sua rotina e esquecia-se de fazer planos. Nem ponto de partida tinha. Nem uma idéia genial. Nem mais acreditava em um futuro, quanto mais aquele brilhante que embalou seus sonhos juvenis. O telefone começa a tocar, mas a certeza da desimportância da chamada lhe tira toda e qualquer vontade de contestá-la. Liga a música para que se sobreponha ao intermitente e cansativo som da ligação à espera. Bach lhe enche a mente e lhe leva de volta ao torpor alcóolico da noite anterior.Tudo são lembranças, borrões de um passado ébrio e ligeiramente acalentador, mas não nostálgico. Escolhera uma vida simples para fugir das saudades e, assim, não se permitia envolver demasiadamente com sentimentos mais profundos.

E ela já fazia parte desta grande mentira. Um amor de mentira, uma vida de mentira. Essa era a verdade, tudo era falso. E ao sair do palco, voltava-se à calma rotineira, aos pedaços de papel e a algumas idéias desconexas.

Comentários

Luciano Pyw disse…
Sempre critico os teus textos quando eu não gosto. Confio no teu talento e por isso me sinto no direito de dizer o que acho que pode ser melhorado. Todavia não posso deixar de parabenizar o texto de hoje. Realmente me emocionou. Muito bom!

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