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Lodo

Vem vindo devagar, lenta e penetrante, líquida e envolvente. Te toca pelas mãos, pelos poros, te faz respirá-la a plenos pulmões. Quando te dás conta, não há mais como escapar, já se torna um apêndice vital dos teus pensamentos, de todos eles. Não te deixa vagar, te faz quase imóvel, te torna uma massa amorfa de digressões sem objetivo, de um sem fim de desilusões. Não é engatilhada por nada em específico, se torna tudo, se torna o teu sono, tua insônia, tua fome e o gosto azedo da comida. Te transforma em escravo do teu desespero, de alucinações e distorções do destino, do passado, das escolhas. Não sobra nada. Afunda-se no lodo. Se destrói o teu castelo, tua leveza, teu âmago. É implacável e jamais te abandona. Se torna parte do dia a dia e te traz os questionamentos, as mesmas perguntas, aquelas que te consomem e que só a tua própria voz pode perguntar. É a sua face obscura, sua única face, sedutora e infiel. É a minha face.

Trivial

Sempre começa de uma forma trivial. Um diálogo como qualquer outro, mais um dia que não parece carregar o mais ínfimo traço de unicidade. Não há aviso ou indício do que virá, do inevitável arrependimento de se sentir vivo. Arrependimento de ter escolhido, arrependimento de ter sido escolhida. É aquele que cultiva seus hábitos, suas rotinas, que se preocupa com o horário, ignorando o destino que já se desenha em uma infinidade de ocorrências pregressas, as quais não controla, as quais desconhece. Segue o seu cotidiano para não enxergar o final do dia. Quantas vezes ao longo de tudo isso não morremos? Deixamos pedaços do nosso ser, memórias que guardamos com carinho, perde-se tanto pelo caminho que me pergunto se há algo mais fatal do que estar aqui. Respirando. Apenas isso e nada mais. E dói. Por deus, como dói! Queria ter forças ao menos para me desesperar, para sentir qualquer outra coisa que não fosse essa insuficiência intrincada e cada célula do meu corpo. Queria poder gritar

O Branco e o Negro

Branco: Veja, preste muita atenção ao que direi. É o pensamento definitivo, tudo aquilo pelo qual ansiaste desde aquele fatídico episódio. Senta-te ao meu lado, venha. Toma um gole e escuta. O dia em que nos conhecemos, aquele foi um momento inebriante, recordas¿ Me perco em digressões, perdoa, não é trato fácil exprimir o que sinto, o que concluo neste momento. Olha o céu, vês¿ É um espelho do tempo, a imagem refletida de uma dimensão na qual existimos, na qual fazemos as coisas, a qual nos esmaga a cada segundo, que nos faz senão inúteis. Inúteis, negro, inúteis! Me explico. O céu, as estrelas, os planetas, as galáxias, o que vemos são representações do seu passado longínquo, de uma luz que jaz morta em sua origem, que já se apagou. São milhões e milhões de anos. O que somos dentro deste escopo¿ De que vale uma vida humana em um contínuo temporal tão amplo, absolutamente infinito, fora de qualquer alcance da minha compreensão, da tua compreensão. Ciclos econômicos, descobertas cie

Nuca

Eu sinto o cheiro o cheiro da tua nuca. Eu sinto o peso de todas as minhas contas. Eu sinto medo pelo meu atraso, mais do que temo pela minha vida. Já não sei o que é ser humano. Eu vivo por reações, minha iniciativa é nula. Sou empurrado por todos os lados. Tu és empurrado tal qual. Somos todos uma multiplicação do mesmo, uma massa amorfa e imprensada contra paredes, contra obrigações, contra os deveres. Meu despertar somente encontra a madrugada, meus movimentos são os de um autômato. Estou aqui preso junto a ti, estou em todos os lugares encarcerado. Quando fecho meus olhos não há uma realidade alternativa a qual imaginar. Sou o habitante, somos habitantes, de um deserto de vida, reproduzindo gerações, nos reproduzindo infinitamente. Para mim, para ti, o amanhã parece um recurso poético, vivemos debaixo do teto de um hoje eterno, de um agora que não acaba. Perdoo a sua transpiração fétida, perdoe a minha. Não há para onde escapar, nunca há. Há muita discussão em torno de nosso re

Não é algo frequente

Não é algo frequente, de nenhuma forma corriqueiro, mas vez ou outra, sem que haja muita explicação, me surge um desejo irrefreável de saber se você pensa em mim. Se você ainda pensa em mim. Não questiono se fui relevante em algum momento de sua vida, creio que fui, mas me pergunto se algo permanece. Sabe, você foi a mulher perfeita, indefectível, alguém que voltou a invadir meus sonhos na noite passada. Eu não te tive em realidade, e talvez esta seja a única forma pura de paixão e de amor. Uma construção toda minha, fundada em alguns traços que você me ofereceu. Tal qual a modelo que posa para um lindo quadro, você foi a obra-prima da minha idealização do ser feminino, da totalidade de um sentimento. Eu te abracei e te beijei, casamos, envelhecemos juntos. O fizemos de diversas maneiras, em tantos lugares e com tantas nuances que poderiam preencher calhamaços infindáveis de páginas dedicadas à eternidade de um sentimento nunca consumido em sua plenitude. Eu te vejo caminhar na rua,

Jazz

Se houve um dia em que nos conhecemos, pensei, por que não poderíamos nos conhecer novamente? Afinal, tivemos uma conexão legal, mas nada tão profundo, nada além de uma relação superficial, como soem ser as interações adolescentes. Pensei que isso faria mais fácil, tínhamos pouca carga para deixar para trás, de repente uma conversa à toa. Não será possível que em pouco mais de uma década tenhamos nos distanciado em interesses e paixões, será? Mas é o que é, minha tentativa de desenvolver algo novo, uma retomada, é amplamente rechaçada por sua frieza. Talvez isso me faça rever, repensar, meu descontentamento com todas vezes outras em que tive surrupiada a chance de me fazer conhecer, todas as investidas fracassadas. Todas elas são negações de frustrações muito maiores, frustrações como a que eu carrego a teu respeito. A nosso respeito, um nosso que nunca foi e que insisto em usar como contrafactual costumeiro de toda minha história. Quiçá essa seja a fonte de grande parte da minha p

Escravidão

Vez ou outra me conforta pensar em ti. Pensar que já fui dono de toda uma liberdade (ou que ela se apoderou de mim, haverá diferença?). Me afasta um pouco deste acre odor do fim da vida. Pensar que perambulamos por caminhos mil, por infinitos anátemas de sonhos hereges. Que montamos castelos, que sentimos o sabor da paz, que fizemos labirintos nas areias em dias nublados. Fica fácil lembrar, perdido no meio de tanta mesmice, de montanhas de obrigações e de um testamento a escrever. O que deixar a filhos que nada merecem, que usurparam minha juventude e que não honram as horas de sono de que abdiquei por cada um deles. Prefiro me confortar nesta fortaleza de negação que são os momentos que passei ao teu lado. Fortunas gastei com meretrizes, tentativas vãs de simular os prazeres proibidos que tive ao teu lado. Foste a puta das putas, a vadia que permanece a atormentar a mediocridade que seguiu. Um mar de insignificâncias, atormentadas por ti, destruidora da paciência, da acomodação