O Branco e o Negro


Branco: Veja, preste muita atenção ao que direi. É o pensamento definitivo, tudo aquilo pelo qual ansiaste desde aquele fatídico episódio. Senta-te ao meu lado, venha. Toma um gole e escuta. O dia em que nos conhecemos, aquele foi um momento inebriante, recordas¿ Me perco em digressões, perdoa, não é trato fácil exprimir o que sinto, o que concluo neste momento. Olha o céu, vês¿ É um espelho do tempo, a imagem refletida de uma dimensão na qual existimos, na qual fazemos as coisas, a qual nos esmaga a cada segundo, que nos faz senão inúteis. Inúteis, negro, inúteis! Me explico. O céu, as estrelas, os planetas, as galáxias, o que vemos são representações do seu passado longínquo, de uma luz que jaz morta em sua origem, que já se apagou. São milhões e milhões de anos. O que somos dentro deste escopo¿ De que vale uma vida humana em um contínuo temporal tão amplo, absolutamente infinito, fora de qualquer alcance da minha compreensão, da tua compreensão. Ciclos econômicos, descobertas científicas, grandes obras, pouco viaja um corpo no espaço no transcorrer do que acreditamos ser a história. Me pergunto, te pergunto!, que racionalidade é esta que nos define¿ O que nos permite é não mais que entender as implicações deste desespero que já não me deixa dormir. Meu Deus, que milagre é a vida em um tudo¿ E quando este todo, abraçado às leis magnéticas de uma física sem fim, deixar de existir¿ E quando ainda não havia¿ O que perambulava pelo nada, negro, diga-me¿ Minha mulher, negro, ela não me deixou. Negro, meus filhos são saudáveis e corados. Meu amigo, escuta, que perfeição de vida é essa que logrei¿ Já não é mais tão fácil entender valores, construir falácias, sentar à mesa e jantar. Não quero o lixo, não perderei meus escrúpulos, negro, me escuta, pareço perder a razão... Negro: É, querido, parece o ocaso do teu conformismo. Espera, não percas a razão, seca esta lágrima e me ouça. O teu todo é uma ilusão, não há. O teu nada é ainda menos concreto, não busques explicá-lo. Dormes confortavelmente, deixa a escuridão te abraçar um pouco mais. Logo estarás acordado, teu dia estará repleto do que fazer. Esquecerás das tuas digressões divinas, tens um pão a ganhar. Isto tudo que discutes é menos importante que tua próxima refeição. Tens que permanecer vivo, é, afinal, tua missão, teu único afazer. Lembra-te que não tens esposas ou filhos. Pouco tens. A vida começa agora, irás nascer dentro de pouco. Me deixarás, mas não te preocupes. Te visitarei enquanto dormes e te abraçarei quando deixes de ser.

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