Jazz


Se houve um dia em que nos conhecemos, pensei, por que não poderíamos nos conhecer novamente? Afinal, tivemos uma conexão legal, mas nada tão profundo, nada além de uma relação superficial, como soem ser as interações adolescentes. Pensei que isso faria mais fácil, tínhamos pouca carga para deixar para trás, de repente uma conversa à toa. Não será possível que em pouco mais de uma década tenhamos nos distanciado em interesses e paixões, será? Mas é o que é, minha tentativa de desenvolver algo novo, uma retomada, é amplamente rechaçada por sua frieza. Talvez isso me faça rever, repensar, meu descontentamento com todas vezes outras em que tive surrupiada a chance de me fazer conhecer, todas as investidas fracassadas. Todas elas são negações de frustrações muito maiores, frustrações como a que eu carrego a teu respeito. A nosso respeito, um nosso que nunca foi e que insisto em usar como contrafactual costumeiro de toda minha história. Quiçá essa seja a fonte de grande parte da minha personalidade, então não há o que reclamar, satisfeito que estou com o que sou, muito além do que poderia ser. Muito mais vil, verdade, muito mais sorrateiro, baixo, muito mais real. Mas isso é porque quando eu te vejo, ainda sangro, ou quando meus devaneios me levam à tua ideia, e à desconstrução dela. A dramaticidade, o exagero, o excesso, essa é a realidade, a minha realidade, a realidade que te irrita, que me atormenta, que te deixa nauseabunda, que me leva a entorpecer a alma com digressões infinitas. Vivo num texto minimalista, em notas de rodapé intermináveis, mas você jamais entenderia isso, e o que me tornei me afastou de eu fui, do que você foi, e eu já não sei quem você é, se a tua ideia viva em minha mente é mais ou menos real do que o teu corpo que perambula por sabe-se onde. Ora, ao inferno, foda-se, te ofereci tudo que podia, em um estado de inocência que jamais recuperei. Teu afastamento, teu cinismo precoce, tua capacidade (ou incapacidade) de viver o momento, de r-e-a-l-m-e-n-t-e vivê-lo, de tomá-lo pela mão e rodopiá-lo com paixão e descontrole, isto fez de ti uma pintura, algo pouco humano, uma jovem pragmática, a tragédia das tragédias. Ora, por uma sabedoria imbecil, por uma sobriedade disforme, quando deverias ter amado sem pensar, quando deverias ter idolatrado ao jovem Werther e o pesadelo da própria existência. Não há nada ponderado em viver, tu foste ponderada. Em tantos e tantos momentos, foste o avesso da vida. Foste o anti-ideal. Foste um fim em si mesma. Um desenho de uma lição que me ensinaste. E se nada disso lhe parece claro, cara, é porque nada do que sinto é diáfano. É um turbilhão de ideias, de palavras, tudo e todas irritantemente freneticamente se debatendo em um limbo entre sonho, realidade e imaginação (pura e simples). É como se me agradasse pensar a ti como um mosaico kafkiano de paz e desalento. Um túnel, um túnel recheado de possibilidades, atemporal, em que tudo ocorre simultaneamente, onde meu amor e meu ódio se dão as mãos e dançam ensandecidamente, convulsionando entre interminavelmente em um ritmo sem marcação, sentido ou harmonia. É um amalgamado de sons abafados, incapazes de recriar o terror de procurar por tua resposta, tua saciedade com o elementar, com o tangível. Você se tornou mais rasa do que eu te planejei, mas te criei após a criação, um ato absolutamente agreste de tentar moldá-la sem nenhum objetivo, mas talvez seja a profundidade da minha loucura que te faz, em verdade, comum. Não vejo tuas linhas retas, teu sono tranquilo, teu ventre impregnado de vida, te imagino uma abstração, torta, tortura não o ser, como sempre deveria ter sido, com as sardas, sem o sorriso, imperfeita, e demasiado real para que seja minha. Mas talvez isso não seja mais do que um pedido de desculpas ao jovem eu. Todas as suas perfeições e os seus defeitos, todos teus detalhes reais e inventados, todas as tuas possibilidades são pouco mais que pensamentos pobres e alterados de um gesto que eu não fiz. Se rola um disco, uma canção, há uma quebrada na cadência e eu te percebo me escutando, pacientemente, há que se ter paciência do começo ao fim. Quando começa o chiado, damos novo início e nos digladiamos uma vez e novamente, perpetrando por todas as possibilidades da minha mente. Mas talvez não haja santuário mais especial do que habitar constantemente os pensamentos de outrem. Decorado com as flores que te dão alergia, para que fiques desconfortável, que nunca descanses, que nunca deixa de me causar desprazer. É assim que te quero.

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